Agronegócios
Gente do campo: da fundação da Embrapa à bionanotecnologia, Sérgio Mascarenhas revolucionou o agronegócio
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A ciência brasileira perdeu um dos seus maiores contribuidores no último dia 31. Sérgio Mascarenhas revolucionou o agronegócio com a fundação da unidade de Instrumentação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), localizada em São Carlos, no estado de São Paulo.
A Embrapa Instrumentação trabalha no desenvolvimento de novas tecnologias em diferentes áreas do conhecimento, como softwares de processamento de imagens, modelagem matemática e métodos sustentáveis de agricultura.
Mascarenhas, que era detentor de uma mente cheia de ideias, o que lhe rendeu o apelido de Professor Pardal, encabeçou vários projetos para o setor rural, além da Embrapa. Alguns destes são o tomógrafo de solos e a Rede de Inovação e Prospecção Tecnológica para o Agronegócio (Ripa) (veja mais abaixo).
Para a secretária executiva dele, Maria Vicentini, “ele era um visionário, ele enxergava como a área de tecnologia era fundamental para suprir a carência de alimentos que tinha no mundo”.
O professor era carioca, nascido em 2 de maio de 1928. Ele se formou em física e química na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). As oportunidades de carreira acabaram o levando à São Carlos, onde desenvolveu várias instituições.
É o caso da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), do Instituto de Física e Química da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto de Estudos Avançados de São Carlos, da USP, por exemplo.
Conheça um pouco do que é estudado nessas instituições:
Apesar de diversas atuações no exterior, Mascarenhas decidiu se manter no Brasil, pois acreditava ser importante desenvolver a ciência no país.
Paulo César de Camargo, diretor do Instituto de Estudos Avançados e Estratégicos (IEAE) da UFSCar, conta que o professor defendia que a ciência é universal, feita com integração entre diversas áreas e usando o conhecimento cultural local.
Mas, para Camargo, um dos seus maiores traços era a valorização do jovem e a importância de ouvi-lo e sugerir caminhos. Ele foi, afinal, o grande mentor de pesquisadores importantes, como Silvio Crestana, ex-presidente da Embrapa.
Mascarenhas também foi importante na área da medicina, na qual criou o monitoramento intracraniano não invasivo, após ser diagnosticado com hidrocefalia. Se trata de um dispositivo que pode ser implantado na cabeça, sem necessidade de furar o crânio, e apontar quando esse se expande devido à pressão e assim acionar o mecanismo para aliviá-la.
Veja a seguir algumas das grandes contribuições de Mascarenhas ao agronegócio.
Física na agricultura?
“Professor, por que que não existe física aplicada na agricultura?”. Bastou esta pergunta ser feita pelo Silvio Crestana, então professor no Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos (UNIFEB), para que a mente de Mascarenhas desencadeasse todos os caminhos para inovar a agricultura brasileira com a criação da Embrapa Instrumentação.
O primeiro passo foi descobrir que já existiam pesquisas na área de física de solo. A partir disso, Mascarenhas fez com que duas coisas acontecessem, segundo o ex-presidente da Embrapa, Silvio Crestana.
Primeiro ele incentivou Abdu Salam, Nobel da Física de 1979, a dar início a reuniões bienais sobre física de solo com cientistas do mundo inteiro. A segunda coisa foi trazer pesquisadores para fornecer cursos sobre o tema aqui no Brasil.
Todos os chefes da unidade desde a sua fundação. Da esquerda para a direita: João Naime, Álvaro Macedo, Paulo Cruvinel, Silvio Crestana, Sergio Mascarenhas, Ladislau Martin Neto e Luiz Mattoso. — Foto: Renan Alcântara / Divulgação Embrapa
Em 2018, durante entrevista, Mascarenhas narrou quando entrou em contato com o professor Eliseu Alves, então presidente da Embrapa, para sugerir a criação da unidade de Instrumentação.
“E disse a ele: ‘olha, a Embrapa não pode ter só veterinária, biologia, a Embrapa tem que ter físicos, tem que ter informática e ele me ouviu e propôs que a gente criasse uma Embrapa na área de tecnologia e Instrumentação. Eu disse a ele que eu poderia ajudar se fosse em São Carlos, para a gente unir esforços e ele me deu praticamente sinal total e eu criei a Embrapa lá com uma equipe pequena”, lembrou.
O ano em que isso aconteceu fui 1984, pouco mais de 10 anos da fundação da Embrapa, que estava ainda emergindo como uma instituição de peso na agricultura, comenta o pesquisador. Segundo Crestana, São Carlos foi escolhida para a unidade pelo seu “hub tecnológico”.
Segundo Crestana, a grande importância dessa unidade da Embrapa é a criação de uma ponte das engenharias, como a mecânica e a eletrônica, com a física, a química, a biologia e a agronomia.
Sérgio Mascarenhas e Eliseu Alves — Foto: Luiza Stalder / Divulgação Embrapa
Tomógrafo de solo
Uma das primeiras inovações da Embrapa Instrumentação surgiu de um teste que Eliseu Alves deu a Sergio Mascarenhas e à sua equipe de pesquisadores. Eles precisariam consertar um equipamento de distribuição de ração importado que havia parado de funcionar.
Além de consertar o equipamento, Mascarenhas prometeu que conseguiria desenvolver uma linha nacional e o fizeram.
A outra inovação é o tomógrafo de solo, criado ainda na década de 80. Com ele é possível efetuar a análise da umidade e densidade de amostras de solo, madeira e materiais semelhantes sem que estas sejam destruídas.
Ele foi desenvolvido como projeto de doutorado de física de Silvio Crestana, que era orientado por Sérgio Mascarenhas.
Paulo Cruvinel, Sérgio Mascarenhas e Silvio Crestana posam com o tomógrafo de solo. — Foto: Divulgação / Embrapa
Na época, Crestana tentava montar o equipamento usando a tecnologia de radiografias. A diferença para a tomografia é que, para a radiografia obter a análise das amostras, é preciso usar uma fonte radioativa, que pode ter uma parte absorvida pelo solo ou pela água.
Mascarenhas, então, sugeriu ao seu aluno o uso de máquinas de raio-X em um hospital. Ainda com resultados insatisfatórios por causa da falta de resolução, o professor achou que era melhor tentar o experimento com tomógrafos.
Eles descobriram que ninguém tinha estudado a máquina para este fim, foram para a Itália, onde conseguiram que um médico, Roberto Motiele, que se interessava pela área, deixasse que eles trabalhassem fora do expediente no tomógrafo de lá.
“Então, imagina um hospital, uma sala de tomografia limpinha, a gente chegando lá com o solo, soro, poeira, água vazando, pé de milho nascendo. Tudo escondido, não podia fazer no horário do expediente que o corpo médico ia matar o Roberto Motiele”, lembra Crestana.
No fim das contas, deu certo, e eles conseguiram medir a densidade da água e do solo usando o tomógrafo e com o passar dos anos novas pesquisas na área foram desenvolvendo equipamentos mais avançados, como tomógrafos portáteis, entre outros.
“Eu me orgulho muito que ela (Embrapa Instrumentação) fez os primeiros trabalhos em tomografia computadorizada para estudar a planta. Em geral o engenheiro florestal, ele olha do solo para cima, para baixo é difícil, então eu pensei em usar tomografia para olhar a água no solo, as raízes”, narrou Sergio Mascarenhas durante entrevista.
Conectando o agro brasileiro
A Rede de Inovação e Prospecção Tecnológica para o Agronegócio (Ripa) surgiu em 2004, depois de Silvio Crestana voltar de uma temporada nos Estados Unidos desenvolvendo uma unidade da Embrapa lá. De volta ao Brasil, ele propôs a criação da Ripa e convidou Mascarenhas para ser coordenador geral.
O projeto Ripa, que acabou em 2010, tinha como objetivo reunir representantes do agronegócio em três setores: acadêmico, empresarial e governo. Assim, seriam debatidas as demandas e as novidades em pesquisa, conectando as 5 regiões do país, explica Paulo Cesar de Camargo, que foi coordenador da Ripa da região Sul.
Camargo conta que um dos objetivos da rede era ampliar a noção de agronegócio, demonstrando também sua face para além das commodities, o lado científico e da sustentabilidade.
“Então isso é uma coisa que o Sergio sempre se empenhou muito em não permitir, ou pelo menos tentar contribuir para que se veja agronegócio como realmente é: um negócio de sustentabilidade da vida e, claro, tem a questão negócio”, diz Camargo.
Silvio Crestana afirma que a Ripa gera frutos até hoje, mesmo após o seu fim, tendo sido fundamental para o planejamento a Embrapa até 2023.
Faltou tempo
Sérgio Mascarenhas era o tipo de pessoa que ligava de madrugada para contar mais uma ideia que teve, conta Maria Vicentini, secretária executiva do professor nos últimos 13 anos. Por causa disso, ela tem uma lista com todas as sugestões de inovações.
Agora, o futuro de todos esses projetos está incerto, segundo Maria. “Muita gente trabalhava com ele, mas ninguém tem aquela força expressiva de ficar lutando, ter a ideia dia e noite e unir as pessoas”.
A secretária relata que Mascarenhas não tinha medo de morrer, mas brincava que tinha que colocar logo em prática todas as suas ideias: “’Eu preciso fazer isso porque o meu prazo de validade está se esgotando’, aí ele tinha uma frase incrível ‘poxa, no melhor da festa eu tenho que ir embora’“, lembra.
Sérgio Mascarenhas e Maria Vicentini no Workshop sobre Monitoramento da Pressão Intracraniana, realizado na USP – Ribeirão Preto — Foto: Arquivo Pessoal
No agro, Crestana conta que ele queria usar a bionanotecnologia para desenvolver eucaliptos coloridos, assim seria possível gerar folha sulfite com cor, sem ter que necessariamente usar tinta.
Não deu tempo, ainda assim, o ex-presidente da Embrapa lembra a importância de Mascarenhas para o setor.
“O legado que ele deixa é a inquietude pela ciência, mas uma ciência que produz conhecimento que ajuda a humanidade, que ajuda o país na questão alimentar e também, por consequência, na questão do equilíbrio do meio ambiente”, diz
“Outro legado é formar gente, talvez esse seja o primeiro, mas, quando você forma gente, você muda o destino dessas pessoas e muda o destino desse país. O Brasil só avançou no agronegócio porque investiu em gente para qualificar”.
G1.globo.com